António Coimbra de Matos. “Não é preciso sofrer, o que é preciso é gozar a vida”

Entrevista a António Coimbra de Matos, no Jornal i (link).

Estamos menos saudosistas, mas o pessimismo continua a ser cultural. Coimbra de Matos, psiquiatra e psicanalista, fala dos portugueses neste virar de década e da depressão, a sua área de estudo. Vê-se cada vez mais burnout e só há uma solução: diminuir o ritmo.

Recebeu-nos no consultório em dia de aniversário e não se recorda de alguma vez ter tirado o dia para celebrações. São os 90, mas António Coimbra de Matos mantém o brilho e agenda de quem tem a sorte de fazer o que gosta. E o mérito, que são já 60 anos de psiquiatria, dedicados ao estudo da depressão e da psicanálise como viagem da “saudade para a imaginação”, de olhos postos no futuro. É para lá que também gosta de apontar. Gostava de ultrapassar os 101.

Chegámos ao final de mais um ano. Somos bons a fazer resoluções, é um exercício que vale a pena fazer?
Acho que vale, se somos bons não sei... É uma altura em que geralmente se faz um balanço e isso é importante.

Costumam pedir-lhe para deitar os portugueses no divã. Como estamos?
Sinto que as coisas estão melhor. Penso que há uma maior capacidade de projetar o futuro e nem sempre foi assim. Somos um povo um bocado virado para o passado, para a saudade, para o “antigamente é que era bom”. Lembro-me de na faculdade ouvir colegas dizer “no nosso tempo é que era bom, agora os alunos não estudam, não fazem...”. A minha experiência sempre foi um bocado ao contrário, de pensar que no meu tempo éramos muito piores.

Até nisso foi sempre mais otimista?
Nitidamente. Os estudantes atualmente são melhores, pelo menos os que tive. Faço hoje 90, mas no ISPA estive até aos 80 e muitos, da Faculdade de Psicologia de Lisboa é que saí aos 71. Do ISPA saí na altura em que já não me apetecia dar aulas, é nessa altura que é preciso parar. Tinha de fazer as coisas por prazer, é o essencial. Mas de facto tinha essa sensação, de que os alunos eram muito melhores. No meu tempo de estudante as pessoas pensavam em futebol, copos, pouco mais.

O que o inquieta mais no país neste virar de década?
Não é tanto no país mas no mundo. Temos a questão das alterações climáticas e outro problema importante sobre o qual se pensa muito pouco que é o excesso populacional.

Que torna a sustentabilidade uma meta ainda mais difícil.
Muito mais. Não é só a pegada ecológica, é o haver muitos pés. Há 200 anos éramos mil milhões, pouco mais, multiplicámo-nos por oito. Em 200 anos houve uma explosão populacional e quando nos pomos em perspetiva e vemos a população das aves, de outros animais, em declínio, daqui a pouco só há homens, vacas e mosquitos.

E fome e guerras?
Pois e fala-se pouco disso, em como se vai resolver.

Vê casos de eco-ansiedade, como se diz agora?
Penso que as pessoas começam a estar mais atentas e conscientes, e isso é bom. E foram precisamente os jovens que tiveram essa capacidade de despertar consciências.

Como vê reações dos adultos em relação ao papel de Greta Thunberg, que tem sido destacada como figura do ano?
Há os mais lúcidos que têm apoiado, ou pelo menos aceite o que ela diz: pode ter uma parte ou outra menos interessante, mas o que é certo é que desencadeou um movimento importante de chamar a atenção. Pessoas como Guterres, Obama, pessoas que consideramos lúcidas, reagem bem.

Do outro lado estão Trump, Bolsonaro. É uma questão de poder?
É, mas penso que nisso também se evoluiu positivamente. Hoje os jovens contestam mais facilmente esses poderes. Costumo citar um caso passado comigo com o meu neto que hoje já tem 29 anos mas na altura teria 16 ou 17. Os pais não estavam, eles moram perto de mim e ele telefona-me para eu o levar à faculdade. No sábado seguinte tornei a ligar-lhe a perguntar se precisava de boleia e ele respondeu “oh avô, se precisar telefono”. Penso que hoje se comunica mais livremente, no meu tempo as relações eram muito mais formais. Hoje ninguém trata um professor por senhor professor, quase que é por tu. Uma vez uma aluna veio ter comigo a dizer que o professor x lhe tinha dito “professor? Dobre a língua, é senhor professor”. E passado um tempo veio o professor fazer-me o mesmo desabafo, se eu não achava inacreditável a falta de respeito.

E disse-lhe?
Não tinha essa confiança, penso que hoje há uma frontalidade que não existia, até a rebater ideias.

Voltando ao divã: depois das marcas que deixou a última crise na saúde mental, estaremos mais preparados para um próximo choque desses?
Penso que o país está mais preparado. Quando digo que as pessoas, eu próprio, estão mais abertas para pensar o futuro, significa que hoje as pessoas estão mais voltadas para o presente e para o futuro e isso é mais saudável até para ultrapassar crises. Não vivemos do passado, o passado forma-nos, mas já passou. O que é importante é o que vem para a frente. Aqui temos dois tipos de atitudes. Todos nós, perante o novo e o desconhecido, temos uma dupla reação, por um lado um certo medo do que irá acontecer e por outro lado uma esperança, um desafio, pensar que vão acontecer coisas diferentes e seguramente melhores. Quando somos mais saudáveis predomina esta esperança, quando somos mais doentes predomina o medo.

É um sinal de alerta?
É.

E trata-se o pessimismo?
É cultural, designadamente na cultura ocidental, judaico-cristã, são culturas da culpa, das dores de crescimento, de que é preciso sofrer para aprender para aguentar as coisas quando não é nada preciso sofrer, o que é preciso é gozar a vida.

Como se altera essa forma de pensar? Entra aí terapia?
Poderá ser, mas penso que fundamentalmente tem de passar pela educação. Por exemplo, na forma como se põe limites às crianças, o “não faças isto ou aquilo porque te podes magoar”. Não é preciso pôr limites, basta mostrar que a realidade tem limites. A realidade física tem limites, se bater com força numa parede magoo mais cabeça do que a parede; se cuspir na cara da mãe, a mãe fica aborrecida e não brinca da mesma maneira. Mostra-se à criança que a realidade física e social tem limites.

Mas na prática como se faz?
Muito simplesmente a criança aproxima a mão da lareira e o pai começa logo “não podes fazer isso porque te queimas”. Se for, da próxima já vai mais devagarinho.

Um pai não quer que um filho se magoe, não será fácil.
Sim, mas há um exagero. Quando não se deixa subir um filho para uma cadeira porque pode cair e partir a cabeça... numa cadeira não partirá propriamente a cabeça. Digo isto mas com o meu filho mais velho a minha mulher, que era médica, tinha muito medo dos problemas cerebrais e a certa altura arranjou-lhe um barrete de borracha. Um dia estava lá em casa um colega nosso que lhe disse “oh Teresa, deixa-o tirar aquilo, abana os miolos e fica mais inteligente”. Nem assim. Temos ainda uma cultura muito protecionista quando existem outras culturas mais liberais em que se permite que a criança aprenda essencialmente pela experiência e nós só aprendemos pela experiência.

Esse é um aspeto importante em consulta?
Sim, se um paciente me diz qualquer coisa, se me fala de um conflito com um filho, com uma namorada, tento que seja a pessoa a tentar compreender o que se passa para resolver o problema.

Saiu há dias um relatório do Conselho Nacional de Saúde sobre saúde mental que dizia não haver mais tempo a perder. Concorda com a urgência? É uma área ainda muito carenciada?
Não tanto. O atraso da saúde mental não é só português, é mundial. É geralmente o parente pobre dos serviços de saúde e a principal razão é que os doentes, a maior parte das vezes, não têm capacidade de protesto e as famílias também não reivindicam por eles. Os diabéticos reivindicam, os hipertensos reivindicam mas estes não e depois a canalização de verbas é menor. Mas os serviços de saúde mental evoluíram muito, não tem comparação.

Especializou-se em psiquiatria em 1959.
Quando fiz o exame de especialidade era o número 32, havia 32 psiquiatras, hoje há 700 e tal! Quando acabei o curso de Medicina era o 2200... hoje há 40 mil. O país deu um salto muito grande.

Como era a psiquiatria quando começou? Eletrochoques?
Sim. Começaram a aparecer alguns medicamentos, depois os antidepressivos, mas as psicoterapias usavam-se muito pouco e a psicanálise começou a desenvolver-se nos anos 60. Não tem comparação. O problema em Portugal é que existe uma discrepância entre o litoral do país onde as coisas são mais fáceis e o interior onde é tudo mais difícil, em todas as áreas.

Somos dos países que mais consomem ansiolíticos. Como se chegou aqui?
Erros dos médicos e uma propaganda muito grande da indústria farmacêutica...

Sentiu-o na pele?
Há muito tempo que me recusei a receber os delegados de propaganda médica, mas penso que continuarão a fazer o trabalho deles, a tentar vender o peixe, mas existe de facto um consumo excessivo de antidepressivos e ansiolíticos que ainda não conseguimos travar.

Também por uma medicalização de estados normais de tristeza e luto?
Sim. Há uns anos recebi uma senhora de 50 e poucos anos enviada por dois colegas e depois de conversar com ela percebi que não eram medicamentos, nem psicanálise nem psicoterapia, mas precisava de passar pelo processo de luto, tinha perdido uma filha. Recebia-a uma vez por mês. Não é só nos medicamentos, por vezes há uma certa facilitação de aplicar determinada técnica que se utiliza a toda a gente, nem sempre há essa autocrítica da pessoa: sei fazer psicanálise, mas não preciso de pôr toda a gente a fazer psicanálise.

O conhecimento da depressão, a que dedicou o seu estudo, mudou muito nestes 60 anos que leva de consultório?
Na teoria e na minha prática mudou, no conjunto não sei. Ainda se aplica excessiva medicação, ainda há infelizmente quem faça eletrochoques.

E agora estão a voltar.
Em alguns sítios, sim, é uma terapêutica medieval.

Nunca os utilizou?
No princípio da carreira usei mas depois nunca mais. Fiz mais do que isso. Em 1962, no Júlio de Matos, proibi os eletrochoques no meu serviço, não os fazia nem eu nem os médicos que trabalhavam comigo. Hoje não sabemos tudo, mas sabemos bastante. Em alguns casos é preciso medicação, na maior parte dos casos chega a psicoterapia, mas o problema que se põe muitas vezes é fazer-se o diagnóstico a tempo e horas, o que faz com que os casos chegam a um ponto que se torna mais difícil.

Por que razão as pessoas não procuram ajuda?
Porque não são bem diagnosticadas, muitas vezes os médicos nos centros de saúde começam a dar logo medicamentos que não são necessários, depois lá está, não há psiquiatras suficientes nos centros de saúde e não há psicólogos.

Um em cada dez jovens sente-se triste todos os dias e 5% tão tristes que não aguentam. São casos que precisariam de intervenção ou é normal na adolescência?
Não precisarão de tratamento, mas de uma conversa. A reação de tristeza é normal quando há um insucesso qualquer, é preciso perceber o insucesso e ser capaz de elaborar esse insucesso. Se rotularmos logo como depressão, estamos a patologizar a tristeza.

Divide a depressão entre normal e patológica. Onde está a fronteira?
Habitualmente o que se pensa é que a depressão patológica se mede pela intensidade e duração. Não é a minha opinião. A depressão é uma reação à perda de afeto e o luto é a reação à perda de um objeto. Se morrer um namorado, o pai, a mãe, a reação é o luto. Se o namorado a abandonar, é uma perda afetiva. Dito de outra forma, o luto é a perda do objeto do amor e a depressão é a perda do amor do objeto. O paradigma do luto é a morte do objeto, o paradigma da depressão é o abandono afetivo, a rotura amorosa. Na depressão normal, a reação à perda afetiva é a revolta. O indivíduo sente-se triste mas revoltado, diz “sacana, estupor, traiu-me”. Na depressão patológica, o indivíduo inverte o papel, sente-se ele o culpado: “Não fiz isto bem, não sou interessante, é natural que se cansasse de mim.” É essa diferença.

Os problemas amorosos são a principal origem das depressões?
Os problemas nas relações mais próximas, mais íntimas, mas atualmente aparece também muita patologia relacionada com o trabalho, é uma das diferenças. Burnout, stress crónico, a própria depressão – o burnout acaba numa depressão se persiste. Vemos casos dramáticos por exemplo em França, com a vaga de suicídios na France Télécom.

Antigamente as pessoas também trabalhavam muito, de sol a sol, o que mudou?
Hoje as pessoas não dão conta que trabalham muito e de que são abusadas. Dantes trabalhavam de sol a sol mas se o capataz ou patrão desaparecia, pousavam a enxada, fumavam um cigarrinho, protestavam. Hoje não falam, cheguei a ouvir relatos de pessoas na Volkswagen ali em Palmela a quem eram descontados os minutos para ir à casa de banho.

Houve o caso denunciado recentemente de uma funcionária do Pingo Doce que acabou por urinar na caixa por não ter podido ir à casa de banho.
Isso acontece no local de trabalho e depois as chefias telefonam, mandam emails para casa, querem resposta na hora. É preciso lutar contra isto. Neste ambiente, criam-se hábitos estranhos. Há uns tempos veio procurar-me uma pessoa que estava deprimida, era burnout, mas neste caso era alguém que trabalhava como freelancer... As pessoas habituaram-se de tal maneira ao excesso de trabalho que se impõe a si próprias ritmos excessivos. Só há um processo para sair disto, que é não estar em excesso de trabalho.

Em que mudaram mais os doentes?
Penso que hoje as pessoas procuram um psicólogo ou psiquiatra com mais facilidade, sem sentirem que isso as põe em causa, que são malucos. Não desapareceu totalmente o estigma, mas diminuiu bastante.

Tinha doentes que vinham às escondidas?
Às vezes acontecia. Lembro-me de um paciente que tratei durante seis anos que me pediu para o nome não ficar em lado nenhum e que fosse tratado como A.S. Ligava para cá e dizia que era o A.S. Não queria que a família soubesse, que os amigos soubessem. Tive também um paciente, que era ministro, que pediu para o ver às 21h30 para ninguém o ver entrar e sair. Era simpático e fiz-lhe esse favor, mas tinha de ficar uma hora à espera pela consulta. Mas isto hoje é menos frequente e isso beneficiou muito os doentes porque se trata mais precocemente as pessoas.

Faz 90 anos. Trabalhou sempre no dia de aniversário?
Sim, acho que sim.

Dá consulta todos os dias?
Sim, menos horas, claro, às vezes também venho ao sábado.

A psicologia explica como se mantém a motivação?
O importante, que nem sempre se consegue, é fazer aquilo de que se gosta. Às vezes não se consegue descobrir o que é, o que é outro problema. O resto é isso, como se costuma dizer, quem corre por gosto não se cansa. Gosto do que faço.

Houve um momento em que descobriu a vocação?
Não foi assim tão fácil. No liceu não pensei logo em Medicina, pensei em Arquitetura, ir para a Marinha. Depois é que decidi. Em Medicina todos os meus professores queriam que fosse para cirurgia e acabei por ir, para cirurgia cardíaca, ainda lá estive seis meses. Foi um bocado ao lado... Depois queria casar-me na altura e havia um lugar pago para o internato em psiquiatria no Porto. Gostei. Alguma coisa já devia vir do tempo do liceu. Era bom aluno, interessava-me principalmente pelas ciências, matemática, pela física, mas lia muito. Aos 18 anos comecei a escrever um romance, publicava numa revista literária, fazia os discursos das festas, escrevia cartas a namoradas por outros. Tinha essa veia das palavras, da literatura, da filosofia. Depois da especialidade no Porto concorri para o Júlio de Matos e foi aí que percebi que a psiquiatria dos eletrochoques e dos medicamentos não me satisfazia e iniciei a formação em psicanálise e neurologia. Estive quase a ser neurologista mas a certa altura optei pela psicanálise.

Li uma frase que lembrou uma vez de um colega seu: “A psicanálise é muito complicada para o paciente quanto se despe intimamente e julga que estamos vestidos. Mas quando repara que também estamos nus, a coisa começa a correr melhor”. Como se consegue manter o equilíbrio nessa exposição?
Era o Mário Casimiro que o dizia. Ou já tem um equilíbrio razoável ou precisa de um tratamento inicial. Se não temos saúde, não conseguimos transmitir saúde aos outros. Se sou medroso, não consigo transmitir segurança.

Recusou casos por serem demasiado pesados?
Recusei alguns casos, uma vez recusei o caso de um doente muito impulsivo que achei que não teria paciência e que me iria zangar. Nos casos muito pesados, e acho que a maioria dos psicanalistas pensará assim, doentes muito difíceis devemos tê-los, porque precisam de ser tratados e para os estudarmos, mas não devemos ter muitos, porque começamos nós a não ficar bem. Não é só nesta área. No IPO, onde a minha mulher trabalhava, uma vez o professor Lima Basto pediu-me uma reunião e colocou-me um problema que tinha na enfermaria das crianças, onde havia muitas baixas de médicos e sobretudo de enfermeiras. Estudei a questão e disse-lhe que num serviço assim, perante aquele sofrimento, as enfermeiras não deveriam estar oito horas, deveriam fazer quatro e outras quatro noutro serviço.

Na psicanálise, o caminho vai sempre dar à infância ou é uma ideia ainda muito estereotipada?
É uma ideia um pouco estereotipada. O percurso do desenvolvimento pessoal e social é ir da saudade para a imaginação. Já o Camões o dizia na terceira estrofe dos Lusíadas:“Cesse tudo o que a Musa antiga canta, Que outro valor mais alto se alevanta”. O futuro é que é o objetivo. Na minha técnica, e sou conhecido por isso como autor da “nova relação” externa, o que é importante é que o paciente comece a estruturar relações mais saudáveis com os outros e com o mundo para se desligar das relações patológicas. Vou à infância, claro, mas não é esse o fim. Se um paciente tem um conflito com o pai, digo-lhe isso, você já não vive em casa, o problema não é submeter-se ao seu pai, o problema é que se submete ao seu chefe. Isso é o atual e é nisso que se tem de ser firme. A infância condiciona o ser atual mas é o ser atual que tem de mudar. Lembro-me de há uns anos, no tempo da troika, estar-se a discutir com amigos se o problema era do Sócrates, se vinha de trás, a certa altura perdi um bocado a paciência e disse que se calhar vem tudo do tempo de D. Afonso Henriques. Temos de ver os problemas atuais.

Somos melhores a arranjar desculpas no passado.
Pois.

Típico de português ou do ser humano?
É do ser humano mas é muito de uma sociedade conservadora, que não gosta de encarar a mudança.

Ainda somos muitos conservadores?
Somos, ainda temos muitos poetas da saudade.

Não é a natureza da poesia?
Há poetas alegres, Camões, Bocage, Natália Correia.

Teve um casamento de 60 anos até à morte da sua mulher. Os doentes também lhe pediam conselhos matrimoniais?
Muitas vezes, mas geralmente não o faziam por saberem da minha história.

Há um segredo?
Há. As relações amorosas são relações de complementaridade, em que as pessoas são diferentes mas se complementam. Muitas vezes as pessoas procuram pessoas iguais e isso não dá grande resultado, é mais para as relações de amizade. Nas relações de amizade é que procuramos pessoas que pensem como nós. Nas relações amorosas a diferença que se complementa é boa. Se sou muito agitado procuro uma mulher calminha. É uma relação complementar e não de comunhão identitária. Os depressivos têm muito isso, casam-se por comunhão identitária e não dá resultado. Mas a complementaridade também tem um segredo, deve ser insaturada. Se é saturada dá numa lamechice, fazem sempre a mesma coisa ou começam a ter conflitos. Tem de haver uma complementaridade que não seja total e que provoque mudança. E, por fim, o segredo é não entrar em rotina, o que é válido para outras coisas. A rotina mata. O casal que faz sempre a mesma coisa, sempre férias no mesmo sítio, sempre o mesmo cinema, está condenado.

Enviuvar é um momento muito difícil?
Não é fácil, e os viúvos resistem menos que as viúvas. Um trabalho feito em Londres por um sociólogo que fez estudos de campo nesta área verificou que os viúvos adoecem mais, deprimem, alcoolizam. As mulheres são mais resistentes.

Mais resistentes no geral?
Penso que sim, em muitas coisas. Os homens têm mais vergonha do que as mulheres. Continuam a ter um certo receio de expor os seus sentimentos mas mesmo fisicamente, embora às vezes se diga o contrário. Vê-se isso nas enfermarias de queimados. No tempo da guerra colonial, vi isso, os homens tapavam o sexo e as mulheres estavam muitas vezes de perna aberta. Os homens têm mais pudor.

O que pesa mais aos 90?
Claro que quando se está na minha idade pensa-se que já não se vai cá estar muito tempo, mas acho que só pensa muito nisso quem não está a viver muito. Quem está a viver muito tem tanto em que pensar que não tem tempo para pensar na morte. Principalmente se tem objetivos, se tem causas, se tem algo porque está a lutar, seja a saúde mental, as alterações climáticas, a política.

Que projetos tem em mãos?
Vou escrever mais um livro, quero continuar a dar consultas. E sou produtor de vinhos.

Alguma vez pensou em voltar para Galafura?
Houve uma altura em que ainda pensámos, mas saí aos nove anos para o Porto, sou mais urbano.

Tem algum cuidado com o cérebro, com a higiene mental?
O grande cuidado com o cérebro é mantê-lo ativo. Se deixa de ler, de se interessar, de se manter atualizado, de conversar, o cérebro é pior que os músculos, atrofia rapidamente. Vai-se a memória, o interesse, a motivação. O essencial é ter núcleos de interesse e por isso sou contra a reforma, acho que as pessoas devem poder continuar a trabalhar, ainda que de forma diferente. E por isso aqui estou, trabalho menos horas, mas sinto-me bem.

O que ainda gostava de ver?
A preocupação mais atual é dar continuidade ao trabalho na psicanálise. Faleceu o professor Amaral Dias, eu já não vou durar muitos anos. Preocupa-me quem vai tomar conta disto.

Já disse que gostava de chegar aos 100.
A minha mãe morreu com 101, quero ultrapassá-la. Já tive dois ou três enfartes, canso-me mais facilmente, mas estou bem.

Faz exercício?
Nenhum (risos).

E não deixou de fumar.
Fumo menos, mas continuo. Não engulo o fumo, como diz o Siza Vieira. Mas faz mal na mesma.

Ao fim destes anos todos de análise, o que o fascina mais na mente humana, o que o intriga?
É sempre fascinante perceber as relações. Escrevo praticamente todos os dias, geralmente sempre a propósito de um doente, uma dúvida que surge, uma iluminação, uma luz diferente para resolver um problema. As pessoas têm uma grande capacidade de dar a volta às coisas, à vida. São um problema mas têm a solução dentro delas. O que acontece na minha perspetiva é que a psicanálise clássica está muito virada para o problema, eu gosto de estar mais virado para as soluções.